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Autor: Flávio Diniz Capanema
Pediatra, Mestre e Doutor pela Faculdade de Medicina da UFMG

O fenômeno epidemiológico denominado “transição nutricional” caracteriza-se por uma inversão nos padrões de distribuição das condições nutricionais na linha do tempo, mostrando-se diretamente influenciado por diversos fatores econômicos e sociais, a partir das mudanças verificadas na modernização e globalização presentes nos modos de vida dos diferentes povos12.
Partindo de uma condição de atraso em direção à modernidade, esse fenômeno nutricional caracteriza-se por uma migração da condição prevalente de escassez (desnutrição proteicoenergética) para o excesso de calorias (obesidade), contribuindo, dessa forma, para o aumento das
doenças crônicas não transmissíveis em todo o mundo.

No Brasil, esse fenômeno tem sido observado nas últimas décadas, mesmo diante das diferenças regionais apresentadas, e tem sido associado a fatores diversos como renda familiar, escolaridade dos pais, peso ao nascer, estilo de vida e dietas inadequadas. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o excesso de peso foi encontrado com grande frequência, a partir de cinco anos de idade, em todos os grupos de renda e em todas as regiões brasileiras. Esse relatório notificou que uma em cada três crianças de cinco a nove anos estava acima do peso recomendado pela OMS. O número de crianças acima do peso mais que dobrou
entre 1989 e 2009, passando de 15% para 34,8%. Analisando conjuntamente os dados de obesidade e sobrepeso, apurou-se que 51,4% dos meninos e 43,8% das meninas apresentavam algum grau de acometimento. O número de obesos aumentou mais de 300% nesse mesmo grupo etário, indo de 4,1% em 1989 para 16,6% em 2008-2009. Entre as meninas, essa variação foi ainda maior, de 11,9% para 32%13.

Outro ponto de destaque no tocante à condição de transição nutricional das crianças brasileiras que, ao mesmo tempo em que se assiste à redução contínua dos casos de desnutrição proteicoenergética e aumento nas taxas de obesidade no país, verifica-se, em paralelo, uma situação paradoxal marcada pelo aumento de carências nutricionais por déficit de micronutrientes – a chamada “fome oculta”.

A fome oculta é caracterizada por uma carência silenciosa, não manifesta, de um ou mais micronutrientes no organismo. Segundo a OMS, trata-se do problema nutricional mais prevalente em todo o mundo, envolvendo cerca de dois bilhões de pessoas14. Ela ocorre quando a qualidade dos alimentos consumidos se apresenta deficiente em micronutrientes – vitaminas e minerais – que atuam nas vias metabólicas e funções fisiológicas do organismo, requisitos estes necessários ao pleno crescimento e desenvolvimento das crianças.

Essa deficiência marginal, uma vez instalada, irá depletar silenciosamente os estoques desses micronutrientes, sem sinais e/ou sintomas aparentes, até o esgotamento das suas reservas, muitas vezes trazendo consigo sequelas irreversíveis, no momento em que o estágio mais avançado da deficiência é alcançado. Tais prejuízos estão diretamente relacionados à precocidade de instalação e exposição prolongada à deficiência.

Embora a fome oculta possa ocorrer devido à deficiência de um único micronutriente específico, a ocorrência de formas combinadas entre deficiências de vitaminas e/ou minerais mostra-se comum, em razão da inadequação dietética presente na alimentação. Dessa forma, cabe salientar que carências múltiplas podem estar mascaradas pela carência maior de um único micronutriente, sobretudo em momentos de mais demanda verificados durante os períodos de mais crescimento do organismo, como nos dois primeiros anos de vida e na adolescência.

Crianças obesas, em particular, merecem um olhar especial em relação à alta prevalência de fome oculta, sendo consideradas um grupo de muita vulnerabilidade ao problema. A realidade vivenciada pelos obesos, marcada pelo excesso de oferta calórica na dieta, frequentemente traz
consigo uma falsa imagem de uma criança bem nutrida, dificultando a sua abordagem precoce.


Seus pais e cuidadores associam o excesso de peso como sinal de saúde, não sendo capazes de reconhecer a obesidade como um problema a ser enfrentado. E, ainda mais, informar-lhes a real possibilidade de coexistência de uma forma de desnutrição ligada à carência de micronutrientes, carência está sem sintomatologia aparente, mostra-se um grande desafio para o profissional de saúde que assiste essas crianças.
Entre as microdeficiências relacionadas à obesidade infantil, duas delas merecem destaque: a ferropenia e a deficiência de vitamina D, lembrando que não raramente elas poderão coexistir no mesmo paciente, sobretudo nos lactentes.

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